O olhar colonizador quando um piauiense vira manchete nacional
Por Lourival de Carvalho*
Com a repercussão do caso do estudante piauiense que obteve a maior nota em Matemática no ENEM, qual o impacto maior da notícia: o fato de ser um piauiense ou o valor da conquista em si?
Quando estou fora do Piauí, sempre que falo que Kátia Tapety, a primeira travesti eleita a um cargo político do Brasil para mandatos de vereadora e vice-prefeita em Colônia do Piauí, mora no interior do Piauí, vejo uma cara de espanto enorme. Ora, e por que não foi em SP, no RJ ou em outro grande centro do sul-sudeste?
Também quando afirmo que, hoje, na minha pesquisa de mestrado, quero investigar o olhar do vaqueiro piauiense sobre a diversidade sexual e de gênero, recebo como resposta: "nossa, você vai justamente no vespeiro do machismo e da homofobia". Respondo que a minha hipótese tem sido construída no sentido contrário: e cito, por exemplo, que o meu avô é vaqueiro e tenho constatado o quão ele é fabuloso em suas percepções e acolhimentos. Sim, escreverei sobre ele(s). Apesar da Av. Paulista e suas lâmpadas.
Noto também que os refletores dos movimentos sociais de esquerda (e, claro, da grande mídia) estão todos voltados para o sul-sudeste e cercanias. Identifique o erro na seguinte frase: 'Ato nacional contra o aumento da tarifa: manifestações no RJ e SP são duramente reprimidas'. Esse vício grave está presente, inclusive, nas organizações políticas que construo. Quando me refiro a isso, não quero negar o centralismo político e econômico que, historicamente, essas regiões concentram, nem defender um regionalismo abstrato, despropositado. Quero denunciar a colonialidade e a indisposição política desses movimentos para aprenderem e renovarem as suas formulações e práticas a partir da luta e dos valores desses povos esquecidos por todos. Desses chãos inóspitos para os pés brancos e de classe média das redes sociais.
Desde que me mudei para Brasília/DF, já ouvi absurdos. Já sorriram do meu sotaque e outros disseram, contentes, que ele não é tão perceptível. Afinal, sotaque imperceptível é o que ouvimos na TV. Como tentativa de elogio, já buscaram as minhas raízes em todos os lugares. Perguntaram umas 4 vezes se tenho ascendência árabe. Não que seja um problema ter essa ascendência, nem que uma coisa impeça a outra, mas notei que era uma tentativa de me dissociar da negritude nordestina. Ouvi várias vezes que não tenho cara de nordestino por ser lido como branco, ou, talvez, não estar dentro do imaginário social construído sobre o que é ter cara de nordestino. E, sim, eles sabem qual cara temos, mesmo sem nunca terem pisado no NE para além das praias, do carnaval e das fazendas de soja e outras atividades de expropriação cultural e ambiental. Isso pra mim nunca vai se tornar um elogio. Pelo contrário, causa nojo, é opressor. Toda a minha família é piauiense, inclusive eu.
Não faço ideia se a minha linhagem é árabe ou europeia, ou seja lá o que for, mas tenho certeza que o meu passado também é negro, embora isso não esteja marcado na minha cor e, portanto, dificulte a identificação colonizadora e racista que vocês têm dos sujeitos que Manoel Carlos não mostra nas novelas para além da cozinha.
Sopesando todos os privilégios que o jovem piauiense branco e de classe média teve para conquistar a nota recorde em Matemática no ENEM, o que obviamente não reduz o seu feito, mas o situa, estruturalmente, em um lugar diferente de quem estudou, por exemplo, a vida inteira em escola pública, estou seguro que a notícia só se nacionalizou por ele ser, antes de tudo, piauiense. Foi assim com a travesti Kátia. É assim quando se referem aos vaqueiros. Tem sido assim até nos movimentos sociais. E comigo na Universidade de Brasília (UnB), também.
Por fim, o que tenho a dizer é: há mais coisas entre o norte e o sul do que supõe a sua vã perspectiva colonizadora! E nós vamos mostrar o quanto pode ser bom!
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